Andrea Dalaqua, gerente de enfermagem do hospital de Vacaria

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Terça-feira, 28 de abril: 20 dias após a confirmação do primeiro caso de Covid-19 em Vacaria, o Made in Vacaria publica entrevista com a gerente de enfermagem do Hospital Nossa Senhora da Oliveira, que nos fala da capacidade física e humana do hospital em receber os casos graves da doença e da sua preocupação com a equipe de profissionais que estão à frente do atendimento. Andrea Dalaqua faz um apelo para que toda a comunidade adote, seriamente, as medidas de proteção para evitar a propagação do coronavírus.

Conversamos com a irmã Andrea por whats app em respeito ao distanciamento social.

Giana: Pandemia: as pessoas com 80 anos, tampouco as com oito, nunca viveram algo parecido. Muitos de nós estamos isolados em casa, ameaçados por um vírus altamente transmissível. Os atuais profissionais da saúde já enfrentaram algo semelhante?

Andrea:A gente enfrentou algo quanto surgiu a Influenza (H1N1) em 2009. Era tudo muito novo, mas não tinha o pavor que tem hoje. Naquele tempo, tínhamos uma equipe mais restrita de funcionários e menos conhecimento. Recordo que eu era a enfermeira do controle de infecção na época.

Hoje, temos muito mais informação de todo o mundo. Apesar disso, temos insegurança em relação ao que vai acontecer em Vacaria, com a nossa população. Eu, de modo particular, me preocupo muito com a equipe. Sinto-me uma mãezona. Cada um que encontro, pergunto se está usando máscara, se está se cuidando. São 200 pessoas na enfermagem do hospital: 30 enfermeiros e 170 técnicos.

Nós adotamos muitas medidas agora, pela proporção que tomou o coronavírus no mundo, é muito preocupante. Nunca imaginei viver isso na minha vida, jamais imaginei uma pandemia, isso era coisa de livro de história. Vivenciar uma pandemia e conduzir uma equipe durante ela, jamais imaginei.

O que os profissionais da saúde sentem neste momento?

O início foi de muito pavor, de muita insegurança. Mas a gente foi amadurecendo o processo. Como organizamos uma ala específica para receber os pacientes com Covid-19, muitos profissionais não quiseram atuar na ala, por questões familiares, alguns têm criança em casa, e nós respeitamos isso.

Todos os dias, praticamente, eu gravo um áudio para a equipe de enfermagem, reforçando o uso de equipamentos de proteção individual (EPIs) e o cuidado que a gente tem que ter um com outro. De modo especial, gravo para as enfermeiras, pois não podemos perder o foco. Em muitos áudios, convido à reflexão, resgatando porque mesmo estamos aqui. Não estamos aqui por nós mesmos, é pelo outro.

Fizemos um juramento quando nos formamos, assumimos ser enfermeiro(a). Não é brincadeira. Agora é a hora de viver o que você um dia disse, jurou! Procuro estar muito perto delas para que a mensagem chegue até os técnicos também. Estamos com uma equipe de 200 pessoas, é impossível eu conseguir interagir com todos. Mas, sempre, no meu falar, reforço esse cuidado humano, um com o outro.

Interessante você destacar o juramento feito no recebimento do diploma profissional. Uma das primeiras coisas que pensei quando foi declarada a pandemia é de que muitos médicos e enfermeiros “fugiriam” do hospital. Entendemos o pavor, pois somos humanos, e nunca sabemos como vamos reagir em um momento como esse.

O médico diagnostica, prescreve, mas quem está na cabeceira do leito do paciente é a enfermagem. Sempre pensei que a enfermagem não é para todos, é um dom. Esse momento afirma isso.

A pergunta que todos os vacarienses querem fazer é: como está a nossa realidade local? É possível responder a essa pergunta? Nós temos dados suficientes para afirmar como está o contágio em Vacaria?

Essa pergunta é complicada de responder porque a gente segue o que a Vigilância Sanitária nos passa. Quem solicita o exame é o médico, mas é a Vigilância que averigua se a pessoa se enquadra nos critérios para realizar o exame, coletar e encaminhar para o Lacen, que dá o resultado.

A gente tem essa confiança, trabalha muito perto da Vigilância. Só que, pessoalmente, eu acho que a gente tem casos na comunidade que não foram testados, pessoas com sintomas leves, pessoas que trataram em casa. Por isso, não temos muita clareza, muitos dados.

Quem coordena o fluxo de atendimento aos pacientes suspeitos de Covid na cidade é a Vigilância Santária? O hospital é mais um “braço” de atendimento?

Sim. Eu me preocupo um pouco, com a saída do Mandetta* porque eu acompanhava os dados diariamente. Procuro estar muito atenta ao que é notícia no Brasil para a gente ir alinhando aqui dentro.  A gente perdeu muito com a troca do ministro. Não temos dados atualizados do que está acontecendo. Isso gera uma preocupação com todo o país. Não estou falando de política, não estou ‘puxando’ para o lado de partido algum, falo que a gente perdeu essa informação macro, diária.

Os dados diários são informados pela Vigilância, pois ela que sabe das pessoas que estão sendo monitoradas em casa, sabe dos pacientes atendidos em outros locais. Aqui, só vêm os que precisam de internação. Quem compila e junta os dados é o Município.

*Luiz Henrique Mandetta, Ministro da Saúde até 16 de abril de 2020.

Como o hospital se preparou para a Covid-19? Há quanto tempo vocês têm acompanhado as notícias do coronavírus? Você já comentou que foi feita uma ala separada, a seleção de profissionais que se sentiram a vontade para atuar nesta ala.

Nós estamos desde fevereiro nos preparando para isso. Fizemos diversas reuniões, treinamentos orientações, notas, comunicados internos, fluxograma. É um trabalho que vem de longo prazo, preparando não só emergência, mas a ala Covid, leitos separados na UTI e, agora, estamos organizando uma sala de parto separada também, porque se chegar uma gestante suspeita, a gente vai ter um outro ambiente para lhe receber.

A cada dia estamos aprimorando o atendimento diante daquilo que aprendemos, das necessidades que surgem aqui e no mundo.

O HNSO atende uma população de nove municípios. A pessoa infartou? É atendida na emergência. Sofreu um acidente? É atendida na emergência. Teve um acidente vascular cerebral (AVC)? Também chega a emergência. A porta de entrada para os pacientes com Covid-19 é a mesma?

Os pacientes chegam pela emergência, incluindo o Covid. Mas o protocolo firmado junto à Secretaria da Saúde determina que as pessoas com sintomas de coronavírus devem ir às Unidades Básicas de Saúde ou UPA e, a partir daí, se necessário, à emergência do hospital.

Ou seja, se hoje eu sinto falta de ar, tenho febre, sou suspeita de ter Covid, devo ir a uma Unidade Básica de Saúde ou UPA? A orientação é essa?

É. Mas claro que se a pessoa está passando mal, com muita falta de ar, e procurar o hospital, vai ser atendida.

O que devo fazer quando chego ao hospital com suspeita de Covid?

Temos uma sala separada na emergência para os pacientes com síndromes gripais, mesmo que não sejam graves. Temos um espaço organizado para eles, para não misturar com os demais pacientes. E a equipe está toda paramentada, tem todos os equipamentos de proteção individual necessários para estar recebendo. É claro que se alguém vem da Unidade Básica ou UPA, recebemos um contato telefônico informando, aí reforçamos o cuidado de paramentação para evitarmos o contágio.

Se eu chegar na emergência hoje, vou ver aquela cena que vemos na televisão, de profissionais de saúde cheios de EPIs, parecendo astronautas?

Exatamente.

Como está a situação dos EPIs?

Nós temos EPIs, não há falta deles internamente. Nós orientamos os funcionários para o não desperdício e o não acúmulo. Um profissional não pode guardar um pacote de máscaras para si, precisa pensar no colega, na saúde de toda a equipe. É um trabalho exaustivo para que o profissional não pense só nele, mas nos outros.

Nós recebemos doações de empresas e de pessoas da comunidade. Doaram EPIs, fabricaram visores de proteção. As costureiras voluntárias fazem máscaras de pano para os demais funcionários do hospital, para que fiquem mais protegidos nas ruas. Infelizmente os funcionários sofrem até preconceito nas ruas. Eu mesma já fui abordada diversas vezes, no supermercado, na fruteira, gente pensando “ela tá disseminando”, a gente vive um estresse dentro e fora do hospital.

O hospital tem estoque de EPIs para quanto tempo? 

A gente tem EPIs, mas não para um período muito grande. Chega uma grande compra hoje, temos para 15 dias. Todos os dias, o setor de compras faz solicitações, mas nem sempre consegue comprar. Isso acontece em todo o país, mas a gente está conseguindo comprar.

Pergunto isso porque, em um momento de crise, recursos financeiros aparecem, a Câmara repassa, empresários repassam, mas pode-se ter recurso financeiro, mas não conseguir comprar os EPIs adequados.

Exato, tem essa situação. Não temos um grande estoque, mas para 15 ou 20 dias temos, estamos conseguindo manter.

Andrea, quando eu trabalhei no hospital havia 10 leitos de UTI, o número continua o mesmo? Quantos respiradores o hospital tem?

Na verdade, continua com o mesmo número de leitos. O nosso número de respiradores é limitado, temos um para cada leito de UTI e mais quatro para a emergência. É um número limitado, a gente reconhece isso, e nos  preocupamos em caso de agravamento dos pacientes.

O número é limitado, mas é o que a gente tem. Importante dizer que a UTI tem internações frequentes, então nem todo esse número está disponível.

A ocupação média da UTI é de 60% a 70%, confere?

Exatamente, mantemos essa média. Ou seja, dos 10 leitos de UTI, seis ou sete já estão ocupados por pacientes com diversas doenças.

Temos uma tratativa com o Governo do Estado para mais oito leitos, o Governo vai equipá-los. Mas não temos certeza de quando. Dependemos do Governo. Tem a tratativa, o convênio assinado por parte do hospital, temos a área física preparada, mas não temos os equipamentos. Estamos no aguardo do Governo.

Quanto aos respiradores, nem sei se tem como comprá-los hoje.

É importante divulgarmos essa informação, porque as pessoas ouvem a notícia sobre a instalação de mais leitos de UTI e podem pensar que é algo imediato. Se fizermos uma analogia com o que acontece em cidades maiores, podemos dizer que não adianta levantar um hospital de campanha se não tem equipamento algum, o paciente vai morrer igual. Ou seja, tem um tempo para equipar e, também, para treinar os profissionais que vão atuar nessas unidades.

Importante ressaltar que não é de um dia para o outro que temos um profissional habilitado para atuar em uma UTI, a gente precisa de tempo. Estamos fazendo treinamentos exaustivos com toda a equipe desde que a pandemia começou, mas é diferente falar, treinar, e vivenciar na prática. A gente precisa desse tempo para a pessoa assimilar as rotinas técnicas.

Só o fato de paramentar alguém, para que se sinta seguro para atuar numa ala Covid, já é um desgaste. Os macacões disponíveis, por exemplo, exigem todo um cuidado no colocar e tirar para o profissional não se contaminar, este foi o grande problema da Itália.

O passo a passo, o protocolo para atender o paciente da Covid é determinado pelo Governo Federal? E quem é o médico responsável por esses pacientes no hospital?

O protocolo seguido é o do Ministério da Saúde. O médico responsável, hoje, é o doutor Flavio Nery. Ele assumiu a ala Covid e, também, está assumindo a UTI, porque o médico responsável pela UTI é o doutor Clewer Schuler, mas ele está no grupo de risco, é idoso, então está evitando o trabalho aqui dentro. Então, é o doutor Flavio Nery que está conosco nesta frente.

Na emergência, contamos com médicos jovens, abertos, estamos fazendo um bom trabalho.

 

Dia 12 de maio é o dia internacional da enfermagem, profissão, função que nasceu com o propósito de cuidar. Há historiadores que dizem que a enfermagem nasceu cinco séculos antes de Cristo. Outros relatam que ela se fundamentou com a Primeira Guerra Mundial. O que você acha importante destacar do trabalho da enfermagem neste momento? Você acredita que a valorização destes profissionais vai mudar com essa realidade?

Eu queria destacar que ser enfermeiro é uma arte, que não é para todos. Enfermagem é dom, nem todos nasceram com essa graça, com esse dom que Deus deu. Acho que a Covid, para mim, se eu tinha uma dúvida porque eu fiz enfermagem, me mostrou porque estou aqui. Vejo que quem abraça a enfermagem tem essa lucidez dentro dela, a presença de Deus dentro dela. Estar aqui não é para qualquer um. Esse é meu sentimento: de gratidão. Eu me emociono quando eu falo do meu ser enfermeira.

Por que você escolheu a enfermagem, irmã?  É claro que muitas das religiosas têm uma atuação na área social, da educação e saúde, mas o que fez você, Andrea, despertar para a enfermagem?

Isso é algo que vem com a minha vocação há muitos anos. Eu cresci vendo e acompanhando o trabalho da irmã Miriam Slongo que era uma enfermeira, que tinha toda uma história com o lar Santa Cecília. Na escola onde eu estudava, ela fazia palestras sobre higiene e cuidados. A presença, a figura dela, sempre me tocou muito. Então, ela iluminou a minha opção pela enfermagem, o que eu busco ser hoje.

O que vamos aprender, o que herdaremos na saúde pública com essa pandemia?

Acho que a gente vai aprender muito mais do que só saúde com a Covid. Na saúde, a gente vai aprender a melhorar os nossos hábitos em casa, com a família, com as crianças. Desde a questão do cuidado com a casa, de um ambiente mais limpo, mais arejado. De ter um quintal, um jardim, de cultivar plantas, acho que esse resgate com as coisas mais simples precisa acontecer. Nós perdemos isso. Desde fazer um chá, um repouso, hoje tudo é farmácia, correr para o médico. Acho que temos que resgatar esses ensinamentos do tempo das nossas avós. Essa coisa da família, essa riqueza que fomos deixando de lado.

A questão humana também. A gente tem que ser mais humilde, mais simples, de reconhecer que nós precisamos uns dos outros. Ninguém é melhor do que ninguém, ninguém sabe mais do que o outro, acho que isso é um grande aprendizado que o ser humano precisa ter.

Que recado você gostaria de dar aos vacarienses? Que pedido gostaria de fazer aos cidadãos?

Gostaria de reforçar todas as orientações que vêm sendo dadas: do uso da máscara, da higiene das mãos, do cuidado com os nossos pais, avós, idosos. E, de modo especial, do cuidado às nossas crianças. Elas não estão entre os pacientes de risco, mas, para mim, as nossas crianças são muito vulneráveis.

Ontem mesmo eu vi, aqui dentro do hospital, uma senhora aguardando de máscara, e a criança de colo, sem proteção alguma. Eu fiquei me questionando no que aquela mãe é melhor do que a criança? Eu acho que as crianças são vulneráveis a muitas outras situações e precisamos ter um olhar de cuidado para elas, no sentido de mantê-las em casa, de dar condições mínimas de higiene, de agasalhá-las. Eu tenho visto muita criança na rua. Os pais estão em casa e a criança está na rua, largada, suja. Os pais são responsáveis por elas, devem cuidá-las.

Há algo que podemos fazer por vocês profissionais de enfermagem? Além de nos cuidarmos, claro.

Tem muitas pessoas da comunidade que estão ajudando com coisas materiais. Mas eu queria lembrar da valorização do profissional da saúde. A gente vê muito recado na internet, vídeos para os profissionais, agradecemos muito. Mas também me questiono: por que não é sempre assim?

O nosso trabalho não mudou, estamos aqui 24 horas por dia, e por que só agora a gente está se lembrando do  profissional da saúde? Então, eu acho que a Covid tem que ajudar a mudar o nosso pensamento porque a violência também acontece com o profissional de saúde. As pessoas xingam, dizem palavrões, agridem de várias formas. Eu faço um apelo à comunidade: o profissional tem que ser valorizado e respeitado, por todos.

REPORTAGEM 

No domingo, 26 de abril, o Fantástico veiculou um reportagem sobre o desgaste físico e emocional dos profissionais que atuam no atendimento aos pacientes com Covid:

https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2020/04/26/profissionais-de-saude-lidam-com-medo-e-pressao-no-combate-ao-coronavirus.ghtml   

por Giana Pontalti | entrevista realizada em 23 de abril de 2020.

2 COMENTÁRIOS

  1. PARABENIZAMOS a Gerente do Hospital de Vacaria, Andrea Dalaqua pela bela e significativa entrevista.
    Ao mesmo tempo que a Parabenizamos junto toda sua equipe, queremos reafirmar nossa prece e apoio, neste brilhante trabalho a favor da VIDA!
    Deus os abençoe e dê renovadas forças, no recomeçar de cada dia.
    Nosso grande abraço.
    Irmãs: Ignacia, Maria Beatriz,
    Genove vá Zandoná e Helga.
    Com. Mãe de Deus Porto Alegre.

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