Maria Joana Pacheco, uma voluntária inspiradora

Aos 90 anos, ela abre as portas de sua casa para acolher e ajudar.

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O mês de outubro vai se despedindo e não queremos deixar passar em branco o aniversário de 169 anos de Vacaria. Aproveitamos a data para conversar com Maria Joana Pacheco, uma senhora de 90 anos e meio (como gosta de destacar) que faz a diferença em nossa cidade. Ela é natural de São José do Ouro e está em Vacaria há 40 anos. Foi condecorada cidadã vacariense por abrir as portas de sua casa para acolher acompanhantes de pacientes hospitalizados, mulheres vítimas de violência e ex-presidiários, oferecendo cama, banho, alimentação e, principalmente, uma palavra amiga.

Confira a entrevista com a franzina e pequena Maria Joana, que é uma gigante de coração.

Maria Joana na simplicidade de seu lar. Foto: Giana Pontalti

Giana: A senhora recebeu recentemente o título de cidadã vacariense, honraria máxima concedida pela Câmara Municipal. Cidadã é uma palavra cheia de significados. O que é ser cidadã para a senhora?

Maria Joana: Ser cidadã, na minha idade, é ser uma pessoa que faz alguma coisa para o povo. É ser útil. Na minha infância, o meu pai dizia que alguém cidadão é alguém de bem.

A senhora foi integrante da pastoral da saúde no Hospital Nossa Senhora da Oliveira. Desde então, recebe acompanhantes de pacientes hospitalizados em sua residência. O que a motivou a acolhê-los?

Antes mesmo de ingressar na pastoral, eu ia ao hospital levar café e uma palavra amiga. Percebia que os acompanhantes dos doentes precisavam de tanta atenção ou mais que os pacientes. Depois de um tempo, a irmã me convidou para fazer parte da pastoral.

Mas depois de anos, comecei a cair a caminho ao hospital. Eu caía, e a garrafa de café também. Quando ficou frequente, percebi que não dava mais para ir. Então, disse ao pessoal da pastoral que não ia mais até os acompanhantes, mas que eles podiam vir aqui. E comecei a receber o pessoal que precisava.

No início, tinha só uma cama e um colchonete. Tempos depois, fui a uma loja comprar um beliche, e não me deixaram comprá-lo porque não autorizavam vender a prazo para uma pessoa da minha idade. Fui então às lojas Colombo, onde tinha um vendedor amigo, o João. Ele me perguntou o que eu ia fazer com um beliche. Quando contei, ele respondeu que, se era para fazer o bem, até o preço seria outro. Voltei feliz da loja porque ia ter mais camas para receber os que me procuravam.

* Hoje Maria Joana tem um quarto simples, mas confortável, que têm quatro camas, um banheiro e acesso livre à cozinha.

A escolha por voluntariar-se na área da saúde tem a ver com a história do seu filho Onésimo, que era enfermeiro?

Sim, o meu coração dizia que ele se foi porque cumpriu a missão dele. Ele morreu num acidente, com 25 anos. Lembro que ele cuidava dos pacientes com muito carinho. Deus levou o Onésimo, e a missão dele ficou para mim.

A trajetória do meu filho fez com que eu me tornasse uma doadora de órgãos. Lembro que fui à Caixa Federal para me inscrever como doadora. Quando ele faleceu, eu pensava que seria ótimo se outra pessoa pudesse aproveitar os órgãos dele. Na época, os filhos tinham medo de que eu fosse doadora porque pensavam que alguém podia me matar para tirar um órgão. Fiz eles refletirem sobre isso, e fui a primeira pessoa em Vacaria a me inscrever para a doação de órgãos.

O que os seus filhos pensavam da ideia de abrir a casa para receber pessoas?

O Odilon diz: “Se está bom para a senhora, está bom para mim”. No começo, a Maria Dercilei achava que eu não devia receber quem eu não conhecia. Ela pensava que, na hora que eu saísse de casa, iriam levar tudo o que eu tinha. Falei para ela: “Minha filha, você acha que quem tem alguém bem doente no hospital vai ter coragem de levar alguma coisa? E o que eu vou levar quando morrer?” Hoje ela me apoia e até sente orgulho pelas minhas escolhas.

A maioria das pessoas que a senhora acolheu é de outras cidades?

Sim, são todos de fora. Tem gente de bem longe, até de Mato Grosso. Lembro de um de Mato Grosso, um caminhoneiro que tinha a mulher em Nova Prata. A mãe dele ficou aqui, a Beatriz. Ela até ligou para a enfermeira do hospital, depois, dizendo que, se um dia eu baixar no hospital, é para avisá-la, que ela vem me cuidar.

Quanto tempo as pessoas costumam ficar na sua casa?

De 8 dias a dois meses, dependendo o caso.

Tem alguém que lhe marcou, em especial?

Todos. Dos recentes, lembro da dona Teresinha, de Esmeralda. Dessa mulher, não posso nem falar [emciona-se], porque me liga todas as noites. Faz uns três meses que o esposo dela faleceu. Ela ficou aqui comigo. E disse que, assim que se recuperar, vem me visitar, e deve ficar uns 15 dias aqui. Essa família, para mim, marcou muito pelo carinho dela e da filha.

As pessoas voltam para me visitar. O pessoal de Jaquirana vem sempre. Eles aproveitam o transporte da saúde que traz os doentes para fazer tratamentos aqui, e vêm me dar um abraço.

Na sua trajetória, a senhora conta que já hospedou até ladrão na sua casa, e que a senhora acolhe a todos porque sempre tem o que aprender e ensinar. O que a senhora aprende com os que passam por aqui?

Além desse que contei, lembro de um homem que estava embaixo da mesa quando o avistei. Mandei sair e disse a ele: “Saia, saia, e me conte quem te mandou aqui. Tu não está vendo minha estatura? Não está vendo que eu sou uma velhinha? Então me conte por que está aqui, que não chamo a polícia”. Dei um conselho a ele para que pensasse no que estava fazendo, e que me dissesse se tinha fome. Ele chorou feito criança. Depois disse a ele para sair e pedir serviço na primeira construção que enxergasse. Então, combinamos: “Um dia você vai vir aqui e vai dizer que se tornou um grande homem.” Dali a oito dias, ele apareceu para doar R$ 20 para a minha igreja, porque estava trabalhando. Nunca mais o vi.

É de uma palavra de incentivo que as pessoas mais precisam?

É de uma palavra. Não é de dinheiro, de nada, é de uma palavra de incentivo.

Já aconteceu de a senhora estar em casa e o pessoal do hospital ligar para informar sobre o falecimento de algum parente de alguém hospedado na sua casa?

Sim, primeiro contam para mim. Fico com o coração doído. Então, eu falo que ligaram do hospital e digo que precisam passar lá. Já aconteceu com umas 10 pessoas de eu ter de ir no hospital tirar a certidão de óbito porque não sabiam como fazer.

Quando uma pessoa perde alguém da família e tem sentimento, choro junto, de soluçar.

A senhora comentou que é aposentada, que recebe um salário mínimo. Como consegue manter a casa, a alimentação que oferece?

Eu sou uma trabalhadora, tenho a minha lojinha de cosméticos (que fica na parte da frente da casa). Quem quiser ajudar, pode comprar na lojinha.

A Igreja me dá alguns alimentos uma vez ao mês: 1kg de açúcar, 2kg de arroz, um pão. Mas lá tem gente que precisa mais do que eu. Depois que ganhei o título da Câmara e a notícia foi publicada, ganhei apoio de algumas pessoas: um saco de batata, de moranga, cesta básica, um dinheirinho.

Quem faz a comida?

Tem uma moça que me ajuda, mas eu cozinho, faço tudo. Varro chão, limpo a casa. Tem quatro quartos, o de visita, o meu, o pequeno e o coletivo.

Quantas pessoas já ficaram aqui?

Mais de mil.

Se quiserem lhe ajudar, o que mais as pessoas podem fazer?

Peçam a Deus para eu ter saúde para continuar.

Momento em que Maria Joana recebe a placa distintiva de cidadã vacariense da vereadora Vanesa de Almeida Boeira. Foto: Artur Alexandre

O que valeu a pena nesses seus 90 anos e meio, como a senhora gosta de ressaltar?

Cada vez, estou aprendendo mais. Eu sou outra, não sou mais a pessoa que eu era. Felicidade eu senti aquele dia que recebi o título, porque no meu casamento nem feliz eu fui. Nunca ninguém me deu aquele valor que me deram lá.

Quando era mais nova, sempre gostei de visitar as pessoas. Meu marido não gostava, e dizia que eu não era parteira. Mas minha vocação sempre foi ajudar.

*Dona Maria é separada. Tentou a separação três vezes antes de conseguir efetivá-la. Saiu de um relacionamento de conflito para uma vida de paz, assunto este que não gosta de comentar. 

A senhora também recebeu aqui mulheres vítimas de violência doméstica?

Sim, de noite, às vezes, ouvia uma batida na janela: era o Ladimir Fabris, muito meu amigo. Aí, eu abria a porta, e ele me contava de uma pessoa na delegacia, que tinha que pousar lá para depois ser encaminhada à família no dia seguinte. Eu mandava trazer para cá. O pessoal da delegacia, ou da assistência social, a Rosângela, da Coordenadoria da Mulher, eles também mandavam gente aqui.

Veio mulher com quatro, cinco crianças. E eu reforçava o regulamento: “Só venham à cozinha por trás da casa, para que o agressor não a veja”. Tem cada caso terrível.

*Maria Joana acolheu mulheres vítimas de violência até Vacaria ter a casa de passagem, que hoje as protege.

A senhora me contou que já enfrentou um câncer.

Tive um câncer de mama, enfrentei hérnias de esôfago, trombose, costelas quebradas, e enxergo tudo depois dos 80 anos, só depois dos 80. Um médico do postão me disse que eu tinha que operar as duas vistas porque a catarata havia tomado conta. Ele fez uma indicação para marcar cirurgia em Passo Fundo. Eu pensei: “Deus me curou do câncer, das hérnias. O que é para Deus me dar dois olhos novos?” Rasguei a receita, e, em pouco tempo, estava enxergando bem. Nem uso óculos. É a força da fé.

Sempre foi de fé?

Tem que ser. O meu pai era muito de ajudar as pessoas. Uma vez por ano carneava uma rês, botava a carne em um jipe velho e saía distribuindo aos pobres.

Lembro que na sessão em sua homenagem, os vereadores comentaram que a cidade seria muito melhor se tivesse mais pessoas como a senhora. O que a senhora acha que Vacaria precisa para melhorar?

Precisa ser mais solidária, levar uma palavra amiga para as pessoas. Eu sou uma testemunha viva, a gente tem que incentivar as pessoas.

A senhora gosta mesmo é de companhia e casa cheia.

Sempre. Na terça, tem culto aqui, às 15h. E no final do ano, também, sempre tem a festa das crianças, de Natal.

Tem alguma coisa que a senhora gostaria de dizer aos vacarienses que não lhe conhecem?

Que venham me conhecer, venham tomar um café, pousar comigo.

Sessão solene realizada na Câmara Municipal, em que Maria Joana foi condecorada cidadã vacariense. Foto: Artur Alexandre.

 

 

por Giana Pontalti | outubro de 2019.

VÍDEO

Acesse o vídeo da sessão em que Maria Joana foi condecorada. O discurso dela está em 1hora43minutos:

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