Mário Adames: o médico que fez voluntariado no Vietnã

O trabalho que tem como retorno a gratidão

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Janeiro, mês de recomeços. Com o ano novo e as esperanças renovadas, muitas pessoas estabelecem metas, buscando dar uma guinada na vida ou, ao menos, dedicar tempo ao que consideram importante. Na lista de muitos brasileiros, está o desejo de fazer um trabalho voluntário e, assim, contribuir para a construção de uma sociedade mais igualitária. O Made in Vacaria aproveita essa motivação para revelar a trajetória de um vacariense que é voluntário no Vietnã.

Aos 55 anos, o ortopedista pediátrico Mário Adames já foi quatro vezes ao país asiático, que esteve em guerra de 1955 a 1975. O que importa para Mário? Praticar a medicina humanitária.

Fotos: arquivo pessoal de Mário

MEA CULPA AMERICANA

A Guerra do Vietnã foi extremamente violenta. Não é por acaso que, no imaginário coletivo, o país é lembrado com cenas de guerra, vastamente retratadas nos filmes de Hollywood. Estima-se que o Vietnã tenha sido sacudido por mais bombas – muitas delas químicas – do que todas as lançadas na Segunda Guerra Mundial. Morreram entre 996 mil a 4 milhões de vietnamitas, não há um número exato, e mais de 58 mil soldados americanos. “Acredito que os Estados Unidos promovam ações no Vietnã porque sabem que apoiaram o lado errado e buscam consertar, amenizar isso”, avalia o médico Mário Adames.

UMA DÍVIDA COM O VIETNÃ

O vacariense embarcou para o Vietnã pela primeira vez em 2009, em missão junto à Sociedade Americana de Ortopedia. Seu propósito inicial era estabelecer contato com médicos-referência na sua área. “Fui a vários congressos americanos, e não é fácil penetrar na Sociedade Americana. Uma das opções era participar de um programa promovido pela entidade no Vietnã. Tinha quatro vagas, e eu me inscrevi, pois sempre achei interessante fazer ação comunitária. Eu atuo em hospital público e digo que é ação comunitária também”, enfatiza.

Com o trabalho no Vietnã, o vacariense conheceu ícones da ortopedia como o francês Baruk. Aprendeu muito com os colegas médicos, mas ainda mais com os vietnamitas.

“Na primeira vez, eu e um colega fizemos 70 cirurgias em 15 dias. Cada um queria mostrar mais trabalho do que o outro. É fascinante trabalhar para pessoas que você nem conhece, mas que acreditam em você para mudar a perspectiva de suas vidas. Isso me encantou. O retorno é uma reverência, um buquê de flor”, conta.

Mário em missão no Vietnã. Foto: arquivo pessoal do médico

O acolhimento do povo vietnamita impressionou o médico: “O Vietnã é um país de cultura apaixonante porque as pessoas são simples, são gratas, há uma inocência nelas. É encantador ver, no centro de Hanói, a população dançando coletivamente, seguindo uma única coreografia. Eles têm uma proximidade uns com os outros que emociona”. É pelos vietnamitas que Mário pensa em regressar ao país, ainda em 2020.

PROXIMIDADE COM O PACIENTE

O dia a dia de Mário Adames é intenso. No Brasil, ele divide o seu tempo entre atendimentos em consultório próprio e na emergência do Hospital Regional Homero de Miranda Gomes, em São José, na grande Florianópolis.

“O Hospital Regional é público e é referência em trauma, estamos na beira da BR 101”, explica. Diferente de muitos médicos queixosos do sistema público, Mário se empenha em qualificá-lo: “Sempre digo que não sou o melhor médico, nem o pior, mas sou o melhor médico a que a pessoa conseguiu chegar, então tenho que fazer o melhor pelo paciente. E quem trabalha comigo tem que fazer o melhor por eles e por mim, para que eu consiga atendê-los calmamente, com atenção”, destaca.

Em São José, pelos relatos de Mário, as emergências não são diferentes da de Vacaria. “Hoje a medicina está banalizada e desestruturada. O paciente deveria ser tratado na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) ou na Unidade Básica, mas o único lugar em que ele consegue ter acesso ao médico é na emergência do hospital. Não deveria estar na emergência, mas é onde ele conseguiu chegar. Então, temos que atender bem”, contextualiza.

E o que fazer com as emergências lotadas e a ineficiência do sistema? Mário acredita que é preciso investir na qualificação dos profissionais para ter resolubilidade. “Para atender bem, o profissional precisa estar preparado, atualizado”. Ele defende, ainda, aportes na medicina preventiva: “Precisamos passar da medicina curativa para a preventiva. Não sou contra os cubanos no Brasil, não sou contra médicos que fazem formação fora. Se têm competência, deveriam poder atuar. Quem não tem competência não se cria. O Brasil é um país sofrido. A gente tem capacidade de fazer uma saúde pública melhor. O que falta hoje é a regulação de atitudes médicas, de condutas”.

Mário é membro da SBTO, da ABTPé, da Flamecipp e da AOFAS International (Boarder of the Humanitarian Committee 2012-2018). Fotos: arquivo pessoal

PACIENTE NÃO É NUMERO

Mário, nem precisou pensar quando o questionamos sobre o maior desafio da medicina. Foi direto: “Re-humanizá-la. Você não pode tratar o paciente como um número. Claro que todo profissional tem o limite de atendimento e, quando há excesso, o profissional dá uma pedalada. A nossa realidade é muito diferente da americana. O tempo que um médico atende um paciente lá, atendemos vários aqui. Mas paciente não pode ser pedalado, paciente não pode ser maltratado. Você tem que ajudar a resolver o problema dele”, reforça.

Mário faz tais afirmações sem sinais de demagogia. Embora tímido, quando fala dos pacientes, comumente se emociona e fica indignado com o descaso: “Paciente não é número, é gente. Eu sou médico de um hospital público e ganho bem por isso. É minha obrigação atender bem”. E atender bem, para ele, é dedicar tempo ao paciente, dialogar: “Se não houver afinidade entre médico e paciente, pensamento positivo de ambos para resolver o problema, não vamos a lugar algum. Não adianta tratar a parte física sem a sincronia de pensamento”.

SINTONIA E DISSONÂNCIA

E é a sintonia com os profissionais do Vietnã que motiva o doutor a voltar ao país asiático. “Eles têm muita vontade de aprender. Apresentam os casos mais difíceis, por vezes, esdrúxulos, para a gente resolver. Lembro-me de uma cirurgia que fiz, havia 11 profissionais me acompanhando. As pessoas lá são extremamente amáveis, olham para você como sendo alguém importante para elas”, conta.

A missão promovida pela Sociedade Americana, da qual Mário faz parte, geralmente dura 15 dias. “Parece pouco, mas é o tempo que a Sociedade estabelece para que não baixe a imunidade dos médicos e não adoeçamos”, explica. Nesses 15 dias, há muito trabalho, mas diversão também. “O Vietnã é um país lindíssimo. Aproveitamos o sábado para passear. Todo mundo deveria conhecer Halong Bay”, elogia.

Mas nem sempre o trabalho voluntário é harmônico. Mário já participou de uma missão no Haiti, em 2011, e se decepcionou: “Sempre que puder, voltarei ao Vietnã, mas não ao Haiti”. O médico se queixa da corrupção existente na “ajuda humanitária” no país, e diz que muitos poderosos se apropriam do caos para tirar proveito. Ele cita o ex-presidente Bill Clinton, que seria dono da telefonia no Haiti, e até um brasileiro que detém o monopólio do aço utilizado nas construções. “Em meio ao caos, tem gente em hotéis que se parecem com o Costão do Santinho. Tem canadenses, alemães lá alimentando a prostituição haitiana”, conta indignado. Mário também se entristeceu com o fato de os tratamentos serem cobrados dos pacientes.

O alerta vale para todos que buscam fazer um trabalho voluntário: é importante buscar informações sobre o trabalho que será realizado, o seu objetivo e a idoneidade da instituição que gerencia o programa. “Não é fácil organizar a agenda para sair, então tem que ser para valer”, diz o médico que gostaria de dedicar mais tempo à família e às caminhadas, único esporte que pratica atualmente. Mário mora em Florianópolis, com a esposa Majela e as filhas Caroline e Mariela.

Mário com a esposa e as filhas. Foto: arquivo pessoal

DA EDUCAÇÃO FÍSICA PARA A MEDICINA

Mário Adames graduou-se em medicina pela Universidade Católica de Pelotas e fez especializações em ortopedia pediátrica e em pé e tornozelo no Hospital São Paulo da UNIFESP. Mas a medicina não foi a sua primeira escolha profissional. “Quando menino, eu sonhava ser piloto de Fórmula1 ou, como todo garoto brasileiro, jogador de futebol”, revela. Mário adorava praticar esportes e sua paixão pelo vôlei o levou a se inscrever na faculdade de educação física. Cursou um ano de educação física em Caxias do Sul e outro em Porto Alegre.

“Durante as aulas de anatomia e fisiologia, percebi que gostava mais de anatomia do que do esporte”, conta. Partiu, assim, para a medicina: “Tive de parar de praticar esportes por problemas no joelho. Fiz duas cirurgias e, durante a recuperação, a ortopedia me chamou a atenção. Fiz medicina para fazer ortopedia”.

A especialização na ortopedia infantil foi uma consequência. “Eu sempre tive uma afinidade muito grande com criança, eu chamo a atenção delas e me sinto confortável com elas. Durante a residência, eu dava plantão na clínica de meus chefes, e eles eram todos ortopedistas pediátricos. A ortopedia pediátrica já é uma especialização, e dentro dela tem divisões: pés, membro superiores, paralisia cerebral, má-formação, entre outras. Eu fiquei mais especificamente no grupo de pé, para poder dar suporte para o chefe”.

DE VACARIA PARA O VIETNÃ

Mário morou em Vacaria até os 17 anos, quando saiu para estudar. Morou em Caxias, Porto Alegre, São Paulo e Florianópolis. “Quando estava em São Paulo, recebi o convite para morar em Floripa e aceitei, pois me tornara pai recentemente e achei bom viver em um lugar mais calmo e, também, estar mais próximo a Vacaria”, conta.

Ele visita a cidade sempre que pode. Gosta dos Rodeios e do Glória. “Quando o Glória subiu, da última vez, eu estava na arquibancada”, relembra. O filho de Adão e Ilse Adames sente muito carinho pela cidade: “Fui feliz em Vacaria. Lembro-me da praça, antes da reforma, da igreja, do parquinho, dos jogos de vôlei. Tenho o maior orgulho de ser vacariense”.

E pensa em voltar? “Dificilmente você volta a morar em Vacaria, pelo nível de especialização que você adquire. Daqui a pouco, a gente vai virar especialista que vai operar só a unha encravada do pé direito”, brinca. “Em São Paulo, quando se operavam pés tortos, eu era chamado para operar junto, pois o outro cirurgião operava só do lado direito e eu fazia o esquerdo”, explica.

A especialização de Mário o ajudou no Vietnã. “A maioria dos ortopedistas só operava adultos, e eu pude aplicar meu conhecimento com as crianças”. Mas não é por ser um especialista pediátrico que trata só crianças: “No Hospital Regional, atendemos todos”. Mas é dos pequenos que lhe vem a maior recompensa: “Se tem uma coisa que me deixa feliz é sorriso de criança”.

O oposto também acontece. “Acompanhei um menino, por anos, que nasceu com os pés tortos. Depois de muitas cirurgias e anos de vínculo, ele recebeu alta. Dias depois, matou-se. Fiquei chocado. Nessa experiência, aprendi que o vínculo com o paciente é para a vida inteira”, comenta em lágrimas.

Mas as lágrimas são de alegria quando fala do voluntariado que faz. Se na primeira viagem o propósito era aprender, nas outras e nas futuras passou a ensinar. “É muito gratificante multiplicar o que se sabe. O que ensinamos lá se difunde para grande parte da população”, orgulha-se.

por Giana Pontalti, janeiro de 2020.

 

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